JUE 28 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 04:57hs.
Rafael Biasi, Alexandre Amaral Filho e Roberto Brasil Fernandes, advogados

Novas terminologias para o estudo das Loterias Estaduais no Brasil

Neste artigo, os advogados Rafael Biasi, Alexandre Amaral Filho e Roberto Brasil Fernandes, do escritório Brasil Fernandes, exploram a definição de termos ligados às loterias para dar o que eles chamam de “terminologia adequada” para uma perfeita compreensão do tema e melhor interpretação jurídica da matéria. Assim, os especialistas explicam do ponto de vista técnico o entendimento para “loteria”, “modalidades lotéricas” e “produtos lotéricos” sob os pontos de vista técnico e jurídico.

Com a decisão, que reconhece a competência dos Estados-membro e do DF para explorar Loterias e o avanço na implementação de serviços lotéricos estaduais em diversos estados do país, faz-se necessária uma terminologia adequada para a melhor interpretação jurídica da matéria.

1. Introdução

Este artigo propõe modernizar a classificação de institutos da atividade lotérica, no âmbito do Direito das Loterias no Brasil.  Isso implica rever classificações de institutos centrais na matéria como forma de repensar os rumos de seu estudo, bem como oferecer ferramentas que sejam úteis para compreender o cenário que se desenhou após a alteração na jurisprudência do STF.

Para isso, deve-se atentar para a advertência que faz Alexandre Santos de Aragão, com apoio na obra de Genaro Carrió, sobre a iniciativa da doutrina ao propor novas terminologias no direito: “as classificações não são, nem verdadeiras, nem falsas, são funcionais ou inúteis; [...] Sempre há múltiplas maneiras de agrupar um campo de relações ou de fenômenos; o critério para se decidir por uma delas é dado apenas por critérios de conveniências científica, didática ou prática”. Com base nesta orientação, defendemos a pertinência, a funcionalidade e a utilidade prática do que passamos a expor.

2. A Proposta                       

Com a decisão do STF nas ADPFs 492 e 493, em 30 de setembro de 2020, um novo desenho federativo ganhou forma, conferindo maior autonomia federativa às unidades regionais: a competência privativa da União para legislar sobre “consórcios e sorteios” (art. 22, XX, CRFB/88) não preclui a competência material (art. 25, §1º, CRFB/88) dos 26 estados, e o Distrito Federal, de instituir loteria e explorarem todas as modalidades lotéricas presentes em lei federal. Este novo cenário torna pertinente a nova terminologia aqui proposta, em especial para distinguir e conciliar as escolhas da Administração Pública no exercício do serviço público lotérico (competência material dos estados e DF) e as formas permitidas de exploração lotérica previstas em lei federal (competência legislativa da União).

Loteria é um termo adotado, segundo nossa proposta, para designar o órgão ou ente público, integrante da Administração Pública dos Estados, do Distrito Federal, ou da União, que regulamenta e explora (direta e indiretamente), modalidades lotéricas com a finalidade precípua de obter receitas para o financiamento de demandas sociais, notadamente da seguridade social conforme orientação da Constituição Federal, no texto do artigo 195-III . Da mesma forma, Loteria é o “local” onde se administra esta atividade e não pode ser confundida com a modalidade ou o produto lotérico.

Modalidades Lotéricas são tipos normativos, previstos em lei em sentido estrito (segundo o STF, de competência da União), que permitem à Administração Pública (Poder Executivo da União, dos Estados e do DF) criar – ou mesmo permitir que agentes privados criem – Produtos Lotéricos. Dito de outra forma, Modalidades Lotéricas definem, dentro da moldura regulatória, as diferentes formas e possibilidades de exploração de serviços lotéricos. Exemplos desta dinâmica são as modalidades de prognósticos numéricos, modalidade passiva, etc., previstas no art. 14 da Lei Federal n. 13.756/2018 e as apostas esportivas de quota-fixa, prevista no art. 29 na mesma legislação; e

Produtos Lotéricos são a expressão, por meio de atos regulamentares, do uso da oportunidade e conveniência do administrador público ao decidir explorar uma determinada Modalidade Lotérica tipificada em lei stricto sensu, a exemplo da denominada “Mega-Sena”, “Lotomania”, Raspa Rio, Minas5, Totolec etc. Nesse sentido, produto lotérico é a operacionalização da atividade lotérica, por meio do qual, finalmente chega ao consumidor/usuário, num ambiente de mercado regulado, o derradeiro bem de consumo dessa atividade: a chance de obter um prêmio e, ao mesmo tempo, contribuir voluntariamente com uma finalidade de interesse social.

De um lado, fica claro que os Estados e Distrito Federal não podem criar novas modalidades; de outro lado, os mesmos entes podem viabilizar, por sua organização e administração próprias, o exercício do serviço público que lhes foi reconhecida a titularidade pelo STF.

Daí a necessidade de se distinguir Loteria e Modalidade Lotérica: a primeira designa o guarda-chuva de atribuições e competências estaduais necessárias para se prestar o serviço de Loteria; a segunda designa a forma – ou, melhor dizendo, a “fôrma” – dentro da qual os entes federativos devem se basear para poderem operar o serviço lotérico e criar os respectivos Produtos Lotéricos estaduais e distrital.

O Produto Lotérico, por seu turno, é uma designação oportuna para a regulamentação das Modalidades Lotéricas a partir das fôrmas definidas na lei federal. É dizer: ao ente federado que titulariza o serviço, caso entenda pertinente, será possível criar quantos produtos lotéricos estaduais e distrital quiser adotando o lastro normativo de uma modalidade lotérica, como, por exemplo, a de prognóstico numérico.

A proposta apresentada rompe com uma tradição no direito brasileiro de não fazer distinções nesta matéria, especialmente entre Loteria e Modalidade Lotérica. Por isto, demonstramos abaixo a pertinência dos conceitos de Loteria, Modalidade Lotérica e Produto Lotérico.

3. As provas da pertinência da nova terminologia

Pelo menos duas provas corroboram o que sustentamos acima.

A primeira é a ausência de um acordo semântico na legislação sobre uma designação apropriada dos institutos. A Lei Federal 13.756/2018, para ficar em um só exemplo, demonstra uma impropriedade técnica no artigo 14, §1: “O produto da arrecadação total obtida por meio da captação de apostas [...] § 1º Consideram-se modalidades lotéricas: I - loteria federal (espécie passiva): loteria em que o apostador adquire bilhete já numerado, em meio físico (impresso) ou virtual (eletrônico)”. A lei usa os termos “Modalidade Lotérica” e “Loteria” com o emprego de sinonímia, para fins meramente estilísticos, em franco desacordo com a boa técnica exigida pela Lei Complementar 95, a qual impõe ao legislador a regra: “expressar a ideia, quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico”.

Ademais, além de ser usado para denominar o que aqui chamamos de modalidade lotérica, o termo “Loteria” possui, como uso corrente, a designação de (i) uma atividade ou (ii) instituição.

Diversas instituições estabelecidas mundo afora, em diversas jurisdições e não apenas no Brasil, intitulam-se de tal forma: “Oregon Lottery”, “National Lottery” (Irlanda), “Loteria do Estado do Rio de Janeiro”, entre outras dezenas de exemplos.

O uso do termo Loteria é útil para designar órgão ou ente público uma vez que a atividade lotérica pressupõe, necessariamente, a atividade estatal que, em ambiente regulado, angaria receitas não-tributárias para atender as suas finalidades. A propósito, os associados à World Lottery Association (Regular Members) são entidades que exploram apostas ou “produtos lotéricos”, conforme expõe o próprio site da organização: “WLA Regular Members are officially authorized entities that offer lottery games and/or betting games in a regulated environment.”

Em segundo lugar, citamos exemplos da pertinência do termo Produto Lotérico. O Decreto 36.453/2020, que regulamenta a Lei Estadual 11.389, de 21 de dezembro de 2020, do Estado do Maranhão, denomina “jogo lotérico” da seguinte forma: “§ 2º Para fins deste Decreto, considera-se jogo lotérico toda operação, jogo ou aposta, nas modalidades lotéricas previstas na Lei Federal nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, para obtenção de prêmio em dinheiro ou em bens de outra natureza.” Outro exemplo na legislação estadual de entes subnacionais está no Decreto 41.037, de 19 de fevereiro de 2021, do Estado da Paraíba, que estabelece, no seu art. 7º, que “jogos lotéricos” serão delineados em planos de jogos e aprovados por portaria do Superintendente da LOTEPI.

Ainda que de forma intuitiva, os legisladores de ambos entes estaduais expressam pelo menos duas noções: na norma maranhense se reconhece uma figura apartada da Modalidade Lotérica, o “jogo lotérico”, como a expressão, a nível estadual, das dinâmicas previstas e autorizadas em lei federal; na norma paraibana, por sua vez, há a compreensão de que a figura criada a nível estadual se constitui na expressão, via ato normativo regulamentador estadual, da vontade do administrador público do estado. Em última análise, o que as mencionadas normas estaduais intitulam de “jogo lotérico” é aquilo que entendemos por chamar, em nossa literatura, de “Produto Lotérico”.

Por fim, também as minutas apresentadas pelo Governo Federal, através da SECAP/Ministério da Economia, para regulamentação das apostas esportivas de quota-fixa, inclusive o art. 29 da Lei Federal 13.756, também utilizam, em diversos trechos, a expressão “produto lotérico”.

E, ainda, entendemos que a noção de “produto” nos parece fidedigna à natureza jurídica do produto lotérico, vez que ele é necessariamente resultante de uma previsão legislativa que lhe é anterior e que lhe confere lastro legal (Modalidade Lotérica, prevista em lei federal). “Produto” é consequência de algo, é resultado. Daí a pertinência do termo “Produto Lotérico” em vez de “jogo lotérico”; i.e., do ponto de vista semântico, este último tem um significado mais amplo do que aquilo que const1itui sua natureza jurídica.

4. Conclusão

Longe de mera finalidade estilística, distinguir Loteria, Modalidade Lotérica e Produto Lotérico confere uma melhor interpretação de acordo com a Constituição da República e a decisão do STF nas ADPFs 492 e 493, na medida que efetiva o direito dos estados ao princípio federativo, à autonomia e à isonomia, além de sanar possíveis confusões entre institutos jurídicos diferentes.

Pode-se, por meio dos termos propostos, preservar a competência legislativa da União (art. 22, XX, da CRFB/88 e a S.V. nº 2) sem derrogação da competência residual dos Estados e DF (art. 25 da CRFB/88); isto se pode compreender também da seguinte forma:

(a) Modalidades Lotéricas são as formas permitidas de exploração lotérica previstas em lei federal e a expressão da competência legislativa da União; e

(b) Loteria e Produto Lotérico são as escolhas do ente federativo e de sua Administração no exercício do serviço público e a expressão da competência material e competência residual dos Estados e Distrito Federal.

Portanto, salvo melhor juízo, a proposta se mostra adequada pois distingue apropriadamente os papéis desempenhados pelos entes federativos e pelas respectivas Administrações Públicas neste novo cenário para as Loterias brasileiras, pós-setembro de 2020.

Assumidas as premissas defendidas aqui, pode-se falar em Loteria em Sentido Estrito e Loteria em Sentido Amplo. O primeiro sentido é aquele que se refere a entidade integrante da Administração Pública, responsável pela organização do serviço; e o segundo, como consta na expressão “serviço público de Loteria”, designa ao mesmo tempo Loteria, Modalidade Lotérica e Produto Lotérico.

Trata-se, ao fim e ao cabo, de situação onde a expressão consta tanto como gênero quanto como espécie, de forma similar ao que ocorre, por exemplo, com o conceito de “proporcionalidade”, mais corrente na doutrina do Direito Constitucional. Veja-se: “proporcionalidade” é gênero, posto que contém três espécies (ou: subprincípios); mas, ao mesmo tempo, a expressão “proporcionalidade” também aparece como espécie, uma vez que ela se desdobra em “necessidade”, “adequação” e “proporcionalidade em sentido estrito”.

Portanto, por visar uma finalidade prática, entendemos que com o uso dos termos propostos se pode obter clareza e unidade de sentido do direito. Com isso, atende-se à lição de Alexandre Santos de Aragão quando sustenta que a proposta de reforma terminológica “só se justifica se aumentar a clareza das ideias, aumentando-lhes a linguagem, ou seja, se a reforma aproximar os termos do ideal da ‘unidade de sentido”.

Esse “aumento” da linguagem jurídica cotidiana na matéria de Loterias no Brasil é benéfico, não por preciosismo técnico, mas por uma necessidade prática imposta pelo contexto normativo e cultural que passou a viger a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal nas ADPF 492 e 493. Deste modo, pretendemos oferecer ferramentas mais adequadas para possibilitar uma interpretação mais precisa, tanto quanto sensível, aos fins das Loterias Estaduais e Distrital no Brasil.
 

Rafael Biasi
Advogado militante na área de Gambling Law.

Alexandre Amaral Filho
Advogado especialista em Direito Constitucional.

Roberto Carvalho Fernandes
Advogado, autor do livro “Direito das Loterias no Brasil” e sócio fundador do Brasil Fernandes Advogados.