Segundo notícias recentes, vereadores de Guarulhos/SP e Porto Alegre/RS pretendem instituir Loterias Municipais próprias, por meio do Projeto de Lei de nº 1.532/2021 e Projeto de Lei nº 217/2021, respectivamente. É da natureza do mandato dos parlamentares buscar soluções para as demandas em seus municípios, de modo que a exploração das modalidades lotéricas pode ser um atrativo considerável, tanto do ponto de vista econômico como social.
No entanto, instituir Loteria Municipal própria, nos parece, é uma aventura jurídica para os gestores municipais e um risco legal para eventuais investidores. A pretensão dos municípios instituir Loteria própria não é pioneira. Inclusive, o STF já se manifestou contrário a esta iniciativa, vide Arguição de Descumprimento Preceito Fundamental 337, muito embora tenha adotado outro fundamento àquela época.
De toda sorte, as iniciativas contemporâneas correm o risco de atrair, além de eventuais vícios de origem e vedação prevista na Lei Complementar nº 173 de 2020, o flagrante conflito em face da Constituição da República/88.
Vale lembrar que o julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 492 e 493 pelo Supremo Tribunal Federal, publicado em dezembro de 2020, assegurou a competência dos Estados-membros e do Distrito Federal para exploração da atividade dentro de seus respectivos territórios ao reconhecer a inexistência de exclusividade da União para instituir Loterias e explorar as modalidades respectivas.
Contudo, a decisão pacificada no Supremo Tribunal Federal não alcança os municípios. Reside aí a imprecisão dos referidos projetos de lei. Para contribuir de forma concreta com o instigante debate, é indispensável lembrar que as ações em comento questionaram dispositivos do Decreto-Lei 204, de 27 de fevereiro de 1967, diploma que proibiu a criação de novas Loterias estaduais, a manutenção apenas das Loterias existentes à época e a limitação das atividades destas.
Com a procedência das ações, o STF reconheceu aos entes subnacionais o direito de viabilizarem a atividade, desde que atendo-se às modalidades lotéricas instituídas pela União, única competente para legislar inovadoramente sobre o assunto.
Os fundamentos do acórdão levam em conta, em especial, a competência legislativa privativa da União, disposta no art. 22, XX, CF/88, a competência residual dos Estados-membros e Distrito Federal, do art. 25, §1º, CF/88, e o princípio da igualdade entre os entes federados. Diante disso, ao expor a ratio decidendi de seu voto (isto é, as razões preponderantes da decisão), o Rel. Min. Gilmar Mendes concluiu:
Os arts. 1º e 32 do Decreto-Lei 204/1967, ao estabelecerem a exclusividade da União sobre a prestação dos serviços de loteria, não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988, pois colidem frontalmente com o art. 25, § 1º, da CF/88, ao esvaziarem a competência constitucional subsidiária dos Estados-membros para a prestação de serviços públicos que não foram expressamente reservados pelo texto constitucional à exploração pela União (art. 21 da CF/88); [...]
Por outro lado, as legislações estaduais instituidoras de loterias, seja via lei estadual ou por meio de decreto, devem simplesmente viabilizar o exercício de sua competência material de instituição de serviço público titularizado pelo Estado-membro, de modo que somente a União pode definir as modalidades de atividades lotéricas passíveis de exploração pelos Estados.
Diversamente do que ocorre com estados e o Distrito Federal, os municípios não têm a chamada competência residual prevista no art. 25, §1º, da CF/88; a referida técnica de distribuição de poderes remonta às origens do federalismo e deixa para os estados-membro tratarem de competências que não tenham sido fixadas como privativas da União (art. 21 da CF/88) ou Municípios (art. 30 da CF/88).
A Constituição da República, mesmo ao intitular os municípios como entes federativos em 1988 de forma inovadora, não adotou a mesma técnica de divisão de poderes que destinou aos Estados e ao Distrito Federal.
Não se desconhece, por outro lado, as declarações nos votos dos ministros do STF no julgamento das ADPFs 492 e 493 que fazem referências a competência dos municípios. Contudo, o fundamento preponderante para a não-recepção dos dispositivos do Decreto-Lei 204/67 está na colisão que o referido diploma promovia entre a exclusividade da União para explorar loterias, notadamente no art. 1º do Decreto-Lei, norma de origem infraconstitucional, e a competência residual dos Estados previstas no art. 25, §1º, CF/88, norma de origem constitucional.
O problema, aos desavisados, reside no trecho do acórdão que assim se refere:
“(iii) A competência privativa da União para legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios (art. 22, inciso XX, da CF/88) não preclui a competência material dos Estados para explorar as atividades lotéricas nem a competência regulamentar dessa exploração. Por esse motivo, a Súmula Vinculante 2 não tratada competência material dos Estados de instituir loterias dentro das balizas federais, ainda que tal materialização tenha expressão através de decretos ou leis estaduais, distritais ou municipais.” (destacamos).
O trecho, contudo, não atribui aos municípios viabilizar loteria. A eles, nos termos do art. 30 da CF/88, é dado legislar sobre assuntos de interesse local, tributos de sua competência etc. Dito isto, é inegável que poderão regrar a localização ou tempo de atendimento de agentes lotéricos (i.e., a “materialização”, local, da atividade), incidência do tributo municipal sobre essas atividades ou outras matérias circunscritas nas normas do art. 30 da constituição, mas nunca sobre a Loteria ou Sorteios, conforme dispôs a Sumula Vinculante 02/STF.
Interação semelhante entre esferas de competência federativas ocorre com legislações municipais que limitam o tempo de espera ou tratam de atendimento com senha em agências bancárias e lotéricas; em tais normatizações a jurisprudência entende se inserirem em assunto de interesse local, uma vez que não são, propriamente, sobre direito do trabalho ou funcionamento de instituições financeiras, matérias estas de competência privativa da União.
Dentro do quadro normativo apresentado, a única alternativa aos municípios é buscar a colaboração com o estado em que ele se insere, ou com a União, para ter repasse de parte da arrecadação em seu território, além da cobrança do ISSQN (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza) sobre o negócio das Loterias.
Conclui-se, portanto, além de os fundamentos da decisão do STF não prestigiarem a questão, nota-se que a própria constituição não prestigia a competência dos municípios para explorar loterias, posto que não lhes atribui competência residual, como é o caso dos Estados-membro e Distrito Federal.
Roberto Carvalho Brasil Fernandes
OAB/SC 20.080
Alexandre Amaral Filho
OAB/SC 37.828
Rafael Biasi
OAB/SC 58.767