A exclusividade na prestação de serviços públicos não é a regra, mas pode ocorrer na hipótese de inviabilidade técnica ou econômica, cujas justificativas devem acompanhar o ato de outorga da concessão. Há muitos casos em que as dificuldades de promover a exploração dos serviços em ambiente competitivo se mostram de plano - típico para cenários de monopólio.
Há atividades, como os serviços lotéricos, em que a legislação aparenta afastar a exclusividade. É o que se vislumbra na Lei federal nº 13.756/2018 acerca das apostas esportivas, ao prescrever que a modalidade “será explorada, exclusivamente, em ambiente concorrencial”. Em apego a literalidade desse dispositivo isolado da lei, os modelos estaduais estão sendo questionados ao cogitar conceder as modalidades lotéricas, inclusive a aposta esportiva, a um único operador, em caráter exclusivo.
É o que se extrai das intervenções realizadas durante a audiência pública que tratou da modelagem dos serviços lotéricos do Estado de São Paulo. Além de invocarem o fundamento legal como impedimento, afirmam que a vai de encontro à proposta da União, que visa conceder autorizações a múltiplos operadores para exploração da aposta esportiva, assim como implica perda de receitas ao Estado e inibe a geração de empregos.
Em verdade, as críticas se valem de argumentos retóricos, descolados da realidade dos Estados que hoje enfrentam influxos concorrenciais intramodal, considerando a concorrência direta com as modalidades que são e ainda serão exploradas pela União, como também intermodal, considerando serviços semelhantes, em especial, os jogos de azar. Esse fato, que aparenta ser ignorado no combate a exclusividade, importa ao mercado, ainda mais diante do desafio de alguns Estados, para restabelecer as atividades do zero (green field).
Ao que parece, o apego ao modelo federal, de múltiplas autorizações e sem processo licitatório - que se aproxima da proposta do substitutivo ao PL 442/91, a qual retira das apostas esportivas o caráter de modalidade lotérica - reflete uma tentativa de manter o status quo, de exploração das atividades no vácuo regulatório.
Para tanto, as críticas cogitam efeitos de relevância inquestionável (queda de arrecadação, inibição de empregos), justamente para levantar dúvidas acerca da opção regulatória posta ao Estado, ou para colocá-lo em posição questionável perante a população, sem incentivo algum para a alteração do cenário de precariedade que se mantém em razão da inércia da União.
Deixando de lado as especulações: há riscos inerentes à delegação dos serviços em um ambiente concorrencial, e que podem se agravar a depender dos caminhos da regulação a ser delineados na esfera federal. Esses riscos constituem motivos suficientes para lastrear a decisão dos Estados na escolha do modelo de exclusividade.
Primeiro, a integridade das apostas é um dos pilares ao desenvolvimento dos serviços lotéricos. Uma vez fragilizada, os apostadores habituais migrarão para serviços similares enquanto os apostadores potenciais abandonarão de vez suas expectativas de ingressar no mercado. Daí a importância de padronização dos serviços e produtos, que demandarão exigências robustas de certificação de procedimentos e equipamentos empregados pelo futuro operador.
Além disso, a aposta esportiva representa modalidade significativa em volume de arrecadação de apostas pelo mundo (30 a 40%). Se cogitada a exploração das loterias estaduais por diversos operadores, na mesma base territorial, as categorias menos lucrativas poderão ser negligenciadas (efeito cream skimming), justamente porque, hoje, já estão sujeitas à pressão competitiva da União.
De outro lado, as apostas esportivas - uma das modalidades mais rentáveis - atrairão inúmeros operadores, implicando aumento de custos fixos e redução de faturamento, além de incentivos à prática de irregularidades ou migração de empresas à informalidade. A arrecadação do Estado para fins sociais restará frustrada, outro pilar fundamental da atividade.
Não se pode perder de vista o risco de supressão de modalidades lotéricas pela União sobre as loterias estaduais. E o impacto no modelo de exclusividade, nesse caso, é atenuado. É que a extinção antecipada da outorga - e a correspondente indenização - tende a ser inevitável na hipótese da multiplicidade de operadores, cujos ganhos de escala e escopo são menores do que do operador exclusivo. Há quase que um subsídio cruzado entre as modalidades.
Por fim, cabe enfrentar o argumento de que a lei federal exige a exploração da aposta esportiva em ambiente competitivo. Ocorre que o mercado já está nesta exata situação, considerando as apostas esportivas conduzidas por sites internacionais e sem qualquer tipo de outorga (cross border). E nada se altera no mercado formal, pois a União vem sinalizando que pretende explorar os serviços neste ano. Assim, ainda que os Estados venham delegar os serviços com exclusividade em sua base territorial, a situação posta bastaria para a conformidade da lei.
Em resumo, diversos fatores podem comprometer a viabilidade econômica das loterias estaduais, que não podem ficar à mercê da sorte. Tais fatores, que revelam as dificuldades práticas da concorrência, justificam medidas regulatórias excepcionais para alcançar os resultados regulatórios pretendidos. Deixemos o campo das apostas apenas aos destinatários dos serviços.
Caio Figueiroa
Mestrando em Direito Público e especialista em Direito Administrativo pela Fundação Getulio Vargas (FGV), membro da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB-SP e sócio de Infraestrutura e Regulação no Cordeiro, Lima e Advogados.
Fonte: Valor Econômico