MIÉ 27 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 20:36hs.
Gustavo José de Guimarães e Souza / Arykoerne Barbosa

Pressa é inimiga da arrecadação no promissor mercado estadual de loterias

Gustavo José de Guimarães e Souza, ex-secretário de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria, do Ministério da Economia, e atual secretário parlamentar no Senado Federal, e Arykoerne Barbosa, advogado e professor, especialista em direito público, publicaram uma coluna de opinião no JOTA sobre o novo marco legal para as loterias estaduais. Para eles, isso “traria resultados promissores para estados, apostadores e empresas”.

A Câmara dos Deputados, há poucos dias, aprovou projeto de lei que amplia o escopo de jogos de azar legalizados no Brasil, incluindo cassinos, bingos e jogo do bicho (PL 442/91). O tema é amplo, complexo e importante, e merece debate franco com a sociedade. Nesse sentido, a proposta segue para análise do Senado.

A despeito da relevância em se propor um novo conjunto de modalidades a serem legalizadas, a União precisa implantar as loterias já permitidas no país, como a “raspadinha” (Lei 13.155/2015) e as apostas esportivas (Lei 13.756/2018). Os estados, por sua vez, têm outro grande e urgente desafio: regulamentar suas loterias, conforme argumentado por um dos autores em artigo na Folha de S.Paulo, cujo aspectos jurídicos detalhamos a seguir.

O STF, em 30 de setembro de 2020, declarou não recepcionados pela Constituição Federal de 1988 os artigos do Decreto-Lei 204/1967 que impediam, a partir de sua publicação, a criação de loterias estaduais e definiam a exploração de loterias como serviço público exclusivo da União. Tal decisão retornou com a possibilidade de os estados iniciarem ou ampliarem, no âmbito de seu território, a exploração de serviços lotéricos.

Surgiu uma janela de oportunidades para esses entes federativos alavancarem novas receitas: a) fundamentais para financiamento de suas políticas sociais e; b) para o ajuste fiscal estrutural necessário à grande maioria.

A publicação, no último dia 24, do Edital 01/22 e da minuta do contrato administrativo de concessão dos serviços públicos lotéricos de São Paulo é exemplo aos demais estados do que não deveria ser feito – não apenas por divergir dos padrões internacionais do setor, mas, em especial, por confrontar os princípios constitucionais da administração pública.

Vale lembrar que desde a origem da consolidação do regime jurídico de loterias, por meio do Decreto 21.143/1932 e do Decreto-Lei 6.259/1944, observa-se a competência privativa da União para estabelecer as diretrizes nacionais da exploração de loterias. Posteriormente, a Constituição de 1988 mantém afastada a competência legislativa dos estados sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive loterias, como resta claro no comando constitucional presente no art.22, XX. Esse é, inclusive, o entendimento do STF em sua decisão.

Apesar de São Paulo ter adotado, por meio do Edital 01, as modalidades previstas pela União, consolidadas na Lei 13.756/2018, há elementos nesse edital que entendemos ferir os princípios da legalidade, tanto na Administração Pública (CF/1988 art. 37, caput) quanto no que tange ao direito tributário (CF/1988 art. 150, I).

Para fins de simplificação, a arrecadação total de uma modalidade lotérica, que corresponde ao montante pago pelo conjunto de apostadores, pode ser decomposta em quatro grupos:

* Payout – percentual destinado aos prêmios;
* Operador – percentual para despesas e manutenção deste serviço público;
* Destinações Sociais – percentual que cabe ao estado ou a quem este determinar;
* Contribuição para a Seguridade Social – percentual que incide sobre a receita de concursos de prognósticos, de acordo com o artigo 195, inciso III, da Constituição.

De acordo com a decisão do STF, com a legislação pátria e com a experiência internacional, entendemos que o decreto estadual que venha a extrair o serviço lotérico da mera possiblidade jurídica para ato concreto, deve estar restrito a questões operacionais, reservando para a norma emanada pelo Congresso Nacional ou pela Assembleia Legislativa (respeitadas a legislação federal) a decomposição, em termos percentuais, dos grupos supracitados.

Ainda que fosse possível entender que um decreto seja instrumento próprio para a normatização do tema, não seria possível afastar por meio de ato normativo infralegal, como um edital, a destinação de recursos estabelecidos e impostos pela Constituição de 1988, como é o caso da contribuição à seguridade.

Ressalte-se que a experiência internacional e nacional, em países cujos serviços de loterias são praticados em ambiente de regulação adequada, ensinam que a definição de percentuais ou valores limites da arrecadação total com loterias estão presentes em normas emanadas de parlamentos, ou do Poder Executivo, com força de lei.

Em Portugal, a distribuição dos resultados das modalidades lotéricas pode ser vista em diversos diplomas legais, tais como os Decretos-Leis 106/2011, 44/2011, 67/2015 e 56/2006.

No Uruguai, a legislação prevê, no mínimo, os percentuais de pagamento ao agente operador e destinação de parte da arrecadação total a algumas entidades na área da saúde. Pode-se citar as Leis 13.032/1961 (art. 336), 18.562/2009 (art. 1º) e 19.135/2013 (art. 2º), como exemplo.

Até mesmo em localidades com tradição jurídica diferente do direito romano, e federalismo descentralizado, há entendimento nesse sentido. Na Califórnia, nos EUA, a Assembly Bill n. 142, que emenda a Seção 8880.4 do Government Code originada do California State Act of 1984, faz tal determinação.

No caso brasileiro, a legislação mais recente que consolida as loterias da União, Lei 13.756/2018, apresenta para todas as modalidades lotéricas seus respectivos percentuais de distribuição da arrecadação total.

Em outra dimensão de legalidade, há entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência pátrias de que as contribuições sociais descritas na Constituição de 1988, art. 195, possuem natureza tributária. Deste modo, a alíquota referente a tal contribuição, deveria ser estabelecida em lei. O exemplo paulista fere, portanto, o princípio da legalidade, na medida em que ao gestor público só cabe fazer o que a lei permite.

E, no caso em tela, inexiste até mesmo a previsão legal (federal ou estadual) sobre o percentual da arrecadação lotérica que cabe ao Estado. Por conseguinte, há também afronta ao princípio da moralidade, na medida em que os percentuais podem ser alterados posteriormente, por agente administrativo, com discricionariedade e sem a devida fiscalização e publicidade junto à sociedade, por meio de alterações contratuais, visto que não guardam vinculação à lei.

Por fim, tais omissões trazem consequências ao princípio da eficiência, por ausência de previsibilidade de recursos lotéricos empregados, em geral, nas políticas sociais e de segurança pública e no esporte, prejudicando a execução e impedindo que o gestor público otimize e racionalize os recursos arrecadados.

Em paralelo, existem no Congresso Nacional projetos de lei propondo o arcabouço de regras e normas das loterias estaduais, inclusive com definição dos percentuais mínimos para a seguridade social e para os prêmios. Caso um desses textos ou nova proposição se torne lei, teremos novamente um descompasso entre os entes federativos nas regras para exploração de loterias.

É racional a ansiedade e é adequada a proatividade dos governos estaduais na ampliação ou criação de suas loterias. Todavia, o resultado pode ser o oposto ao pretendido. O risco de judicializações, não só na esfera privada, mas da própria União e/ou de suas operadoras de loterias podem atrasar o início dessa exploração tão importante aos estados.

Replicar a legislação federal ou, melhor ainda, propor via Congresso um novo marco legal para as loterias estaduais no país – em stand-by desde 1967 – que garanta competição justa entre as loterias estaduais e as federais, inclusive em termos de distribuição dos valores arrecadados, seria um caminho menos arriscado e com resultados mais promissores para todos: estados, apostadores e empresas operadoras de loterias. A pressa é inimiga da perfeição, e da arrecadação.

GUSTAVO JOSÉ DE GUIMARÃES E SOUZA
Economista com especialização em estatística, mestre e doutor em economia pela UnB com estágio doutoral na Columbia University (NYC, 2011-12). Primeiro colocado no concurso do Banco Central. Professor de mestrado no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Foi secretário de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria, e secretário especial adjunto de Fazenda, ambos no Ministério da Economia, onde trabalhou de 2016 a 2022. Atualmente é secretário parlamentar no Senado Federal.

ARYKOERNE BARBOSA
Advogado e professor. Especialista em direito público. Sócio efetivo do Instituto de Direito Administrativo de Alagoas (IDAA). Coautor dos livros "Covid-19 e Direito Administrativo: Impactos da Pandemia na Administração Pública", "Comentários aos Enunciados do Direito Administrativo", "Novo Direito das Licitações" e "Contratos Administrativos de acordo com a Lei 14.133/2021".

Fonte: Jota