MAR 26 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 09:36hs.
Marcello M. Corrêa, advogado e ex-diretor jurídico da Loterj

Terminal lotérico não é caça-níquel!

Em uma reflexão sobre questionamentos que vem sendo levantados no mercado de jogos e loterias, o advogado e ex-diretor jurídico da Loterj, Marcello Corrêa, analisa com exclusividade para o GMB as distinções entre caça-níqueis e terminais de videoloteria. Para ele, as semelhanças entre um e outro tem despertado a curiosidade, “mas existem diferenças funcionais e jurídicas entre elas”. No artigo, ele dá os detalhes de seu entendimento sobre o tema.

Pode até parecer uma bobagem estabelecer a diferença entre uma máquina de caça-níquel (slot machine) e um terminal lotérico (video lottery terminal). Mas quando você é questionado algumas vezes por operadores lotéricos em poucas semanas sobre essas diferenças no cenário brasileiro, o tema deixa de ser simplório.

Vamos propor um cenário para ilustrar: em determinado estabelecimento comercial está instalada uma máquina tipo totem (gabinete com tela) e nele tem animações, luzes e sons para atrair o jogador. Este pode comprar créditos com seu cartão bancário para jogar e a dinâmica do jogo consiste em fazer algumas escolhas na tela da máquina para saber se ele foi vencedor ou não. Por essa descrição, essa máquina é um caça-níquel ou é um terminal lotérico?

Mas antes de responder essa questão, vamos estabelecer um contexto também. Como se sabe, os jogos de azar ainda são proibidos no Brasil graças ao disposto na Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941) e as máquinas de caça-níqueis são largamente utilizadas pelos contraventores no território nacional.

Daí a preocupação dos operadores (presentes e futuros) de não terem os seus terminais confundidos com os caça-níqueis, visto que externamente podem ser idênticos e a parte lúdica do jogo também. E, por tais semelhanças, eles não querem ter de enfrentar apreensões, ações policiais e infindáveis atritos com as forças de repressão, além da rejeição da opinião pública.

A mesma preocupação também reside nos agentes públicos responsáveis pela exploração do serviço público de loterias, pois eles também não desejam ter seus equipamentos e produtos lotéricos confundidos com a contravenção e, por conseguinte, ter de ficar respondendo aos órgãos de controle ou ao Ministério Público, porque, supostamente, permitiram a instalação de caça-níqueis.

Em resumo, no Brasil o desconhecimento sobre jogos é imenso e ainda temos o preconceito religioso de alguns agentes políticos. Com efeito, tais preocupações são legitimas.

Dito isso e estabelecido o contexto, podemos começar a responder aquela questão da seguinte maneira: existem diferenças funcionais e jurídicas entre as máquinas de caça-níquel e os terminais lotéricos.

Do ponto de vista funcional, a despeito da interface visual ser muito semelhante, o que torna um desafio comparar terminais lotéricos com caça-níqueis em linhas gerais, essas máquinas possuem, ao menos, duas diferenças fundamentais. A distinção entre essas máquinas é melhor verificada observando como cada uma determina os vencedores e paga as premiações.

No exemplo acima, trata-se de um jogo instantâneo, pois não depende de evento futuro para indicar se o jogador foi vencedor ou não, nos termos do art. 14, § 1º, V da Lei n. 13.756/18 (aquele que apresenta, de imediato, se o apostador foi ou não agraciado com alguma premiação), mas vale destacar que um terminal lotérico pode apresentar mais de uma modalidade.

Mas continuando com o exemplo do jogo lotérico instantâneo, nele a quantidade de prêmios é determinada no plano lotérico estabelecido pelo operador. A máquina (terminal) é municiada com um número determinado de cartelas virtuais (banco de dados), umas contendo premiações e outras não. Mediante uma ação do jogador, o sistema randômico escolhe uma cartela e  a apresenta na tela para o jogador (ou pode até imprimir a cartela, dependendo da máquina). Premiada ou não, aquela cartela é eliminada do banco de dados da máquina.

Mas quando há premiação, normalmente a máquina imprime um ticket para o vencedor entregar para um funcionário do estabelecimento na qual ela está instalada. O funcionário, por sua vez, realizará o pagamento em dinheiro. Da mesma maneira, vale comentar, os pagamentos podem ser com mercadorias ou até com crédito direto na conta bancária do vencedor (se o terminal estiver conectado uma rede de pagamentos).

Já uma máquina tradicional de caça-níquel também inicia o jogo com uma ação do jogador e o seu resultado também é extraído por um sistema randômico, mas não necessita de um banco de dados com cartelas ou bilhetes virtuais para acessar. A premiação, por sua vez, também não é pré-determinada, pois ela vai depender do volume de recursos que entraram na máquina. Iniciada a jogada, o sistema é quem gera as combinações de símbolos, imagens e números para determinar o resultado. E, sendo uma jogada vencedora, a máquina libera a quantia nela existente (jackpot). 

E por oportuno, vale advertir que tanto nos EUA e quanto no Reino Unido, caça-níqueis (slot) e terminais lotéricos (lottery terminals) são classificados em função dos jogos que apresentam. Daí que não é viável fazer um paralelo perfeito entre a classificação dessas jurisdições com a brasileira, isso porque a classificação da Lei n. 13.756/18 não é a mesma daqueles países.

Nos EUA, para ilustrar, temos o sistema de três classes, criado pelo Indian Gaming Regulatory Act. Ele divide os tipos de jogos três grandes grupos: a Classe I consiste em jogos tradicionais jogados pelos nativos americanos entre si; a Classe II consiste em bingo, pull-tabs e jogos de cartas, como pôquer (e vídeo pôquer); e a Classe III consiste em tudo, desde corridas de cavalos a loterias e jogos populares de cassino, incluindo bacará, blackjack, dados, roleta, máquinas caça-níqueis e algumas formas de vídeo pôquer. Como tal classificação está diretamente relacionada com a distinção entre máquinas, lá os terminais lotéricos estão associados aos jogos da Classe II.

Então aquelas características funcionais são as principais diferenças entre as máquinas que devem ser consideradas no Brasil, sendo possível obter tais descrições do fabricante ou, até mesmo, de certificadoras independentes.   

Já do ponto de vista jurídico, no Brasil os jogos explorados pelo poder público são classificados como serviço público (de loterias). Então o poder público pode explorar o serviço diretamente ou delegar ele aos operadores lotéricos (por via de concessão, de permissão ou até por autorização).

As modalidades, que não podem ser confundidas com os produtos (jogos), estão elencadas na Lei n. 13.756/18 (art. 14, §1º e art. 29). Elas, por sua vez, podem resultar em jogos instantâneos, jogos de prognóstico ativo, jogos de prognóstico passivo e apostas esportivas de quota fixa (as famosas apostas esportivas).

Mas quando a exploração dos jogos acima descritos é realizada pela inciativa privada sem o liame jurídico formal com o titular do direito de exploração do serviço público, temos o conhecido jogo de azar, que, por sua vez, é uma contravenção penal, desde 1941.

Então a segunda grande distinção é se a exploração do jogo está sendo realizada em conformidade com o poder público ou não.

Sendo o terminal identificado como sendo da execução do serviço público (marca, código etc.), não há que se falar em caça-níqueis, sobretudo se a instalação foi previamente autorizada pelo órgão competente e foram apesentados os manuais ou certificações que atestam as características e funcionalidades da máquina.

Portanto, é certo que teremos uma curva de aprendizado pela frente e as cautelas são sempre saudáveis para construção de loterias robustas e íntegras. E, da mesma maneira, não temos dúvidas que os terminais lotéricos serão muito bem aceitos pelo público brasileiro, da mesma maneira que são aceitos em vários outros países.

Marcello M. Corrêa
Especialista em relações governamentais, advogado e mestre em Ciência Política. 1º. vice-Presidente da Comissão Especial de Esportes, Loterias e Entretenimento da OAB-RJ; Integrante da Comissão dos Jogos da OAB-DF; e ex-diretor Jurídico da Loteria do Estado do Rio de Janeiro.