LUN 25 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 11:52hs.
Caio Figueiroa e Eduardo Cruz, advogados especialistas em concessões

Loterias municipais: uma aposta arriscada para o setor?

A incerteza jurídica quanto à competência municipal em regular suas loterias é o cerne do artigo dos advogados Caio Figueiroa e Eduardo Cruz. Especialistas em parcerias público-privadas e concessões, eles apontam que a exploração pelas cidades “é vista com resistência”. E concluem: “os municípios estão em uma corrida contra o tempo caso prospere a hipótese de incompetência”.

A exploração de serviços lotéricos caiu na graça de entes federativos diversos após o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal das Arguições de Descumprimento de Preceito Federal 492 e 493 em conjunto com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.986, ocorrida em sessão do Plenário de 30/09/2020.

O julgamento resultou no reconhecimento, por unanimidade, da competência material dos estados e do Distrito Federal para explorar e regulamentar tal serviço público, resguardada a competência legislativa exclusiva da União para definir as modalidades lotéricas passíveis de exploração (art. 22, XX da CF), hoje sedimentadas na Lei 13.756/2018.

É verdade que o objeto das ações que deram origem a este paradigmático acórdão abrangia tão somente a competência de estados e do Distrito Federal para exploração dos serviços. Contudo, os votos proferidos pelos Ministros Gilmar Mendes(1) e Alexandre de Morais(2) levantaram uma nova hipótese, ainda que em breves menções, qual seja, se os municípios poderiam implementar e explorar seu próprio serviço lotérico no exercício de suas atribuições de interesse local.

Após este julgamento, não apenas estados e Distrito Federal deram início à promulgação de leis e desenvolvimento de estudos de viabilidade para a delegação destes serviços. O mesmo movimento se iniciou com alguns municípios(3), na suposição de que o referido acórdão os favorece. Exemplos não faltam, muito embora sob diferentes níveis de maturação.

Capitais como Porto Alegre e São Paulo promoveram a abertura de Procedimento de Manifestação de Interesse para a elaboração de estudos de viabilidade relativos à implantação e operação de suas próprias loterias. Cuiabá e São Vicente, por sua vez, já delegaram, mediante concessão, a atividade à parceiros privados, tendo esta última, inclusive, já iniciado a comercialização de produtos lotéricos à população.

Perdura, no entanto, a incerteza sobre a competência municipal sob o fundamento de se tratar de serviço de interesse local (art. 30, V da CF), especialmente em função da dinâmica e das externalidades negativas provenientes das loterias, a exigir plena integração e escala para se justificar do ponto de vista da viabilidade técnica e econômico-financeira. Ao que nos parece, esse cenário remete a um déjà-vu da arrastada discussão enfrentada pelos estados desde a promulgação do Decreto-Lei 204/1967 até o julgamento paradigmático pelo STF em 2020.

É certo que a exploração por municípios é vista com resistência, já que a concorrência no mercado afetará o volume de apostas de estados e da própria União, não sendo difícil antever persistirá a insegurança jurídica.

Exemplo emblemático disso é a Ação Civil Pública nº 1987022-96.2010.8.13.0024, em trâmite perante o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ajuizada no ano de 2010 pelo Ministério Público do Estado em face da Loteria do Estado de Minas Gerais – LEMG e do Consórcio Intralot, este último vencedor da Concorrência Pública Internacional LEMG 001/2009 que tinha como objeto a “concessão dos serviços de implantação e operação de jogos do sistema on-line/real time”.

O cerne da discussão residia, à época de sua propositura, sobre a competência, ou não, do Estado de Minas Gerais para promover a exploração dos serviços, em desacordo com as limitações impostas pelo Decreto-Lei nº 204/1967. Após ter transitado por todas as instâncias processuais cabíveis, apenas em novembro/2023, mais de três anos após a decisão do STF, o Ministério Público reconheceu a superveniência de coisa julgada sobre o mérito discutido nos autos, recomendando observar a primazia do julgamento de mérito e julgada improcedente o pedido inicialmente formulado.

Não obstante o julgamento caminhe para a preservação, na íntegra, dos efeitos do contrato de concessão firmado pela LEMG junto ao Consórcio Intralot, por mais de uma década recaiu sobre esta contratação a insegurança jurídica advinda da existência de Ação Civil Pública que pleiteava sua nulidade, além de eventual necessidade de pagamento de indenização pelos responsáveis correspondente aos valores arrecadados pela exploração dos serviços em âmbito estadual. Ou seja, uma cifra estratosférica, ainda mais pelo fato de que o pedido não estaria desconsiderando a premiação paga aos apostadores mineiros.

Apesar de caminhar para um cenário de improcedência, não seria possível assegurar qual seria o resultado processual acaso o julgamento definitivo da lide ocorresse previamente ao julgamento do STF. E aí o propósito deste texto, no sentido de refletir sobre as consequências práticas da insegurança jurídica hoje existente, já que questionamentos da mesma ordem poderiam recair sobre as operações municipais, de forma que eventual determinação de nulidade contratual, ou mesmo o risco de pagamento de indenização decorrente desta nulidade representa significativo risco aos apostadores, operadores lotéricos e até mesmo municípios.

Levando em consideração os efeitos práticos que devam ser sopesados pelo julgador (art. 20 da LINDB) quando do eventual questionamento sobre o exercício desta competência, há, sim, evidências que justificariam sua preservação, ao menos para os contratos até então celebrados.

Isso porque, ainda que se entenda pela incompetência municipal e a consequente nulidade dos instrumentos contratuais pactuados, para que não se agrave a insegurança jurídica sobre serviço com nítido viés social, ao STF competiria o poder-dever de modular os efeitos de decisão, impedindo que os apostadores busquem a devolução de valores apostados, o que teria efeitos perversos não apenas aos operadores lotéricos, mas ao próprio erário, já que parcela da receita líquida proveniente das atividades deve ser destinada a ações e programas assistenciais.

Ainda pela perspectiva da Lei 8.987/1995, e considerando que as operações municipais estão se materializando sob o regime de concessão comum, eventual decisão que não opere a modulação adequada imporia um ônus adicional ao poder concedente, uma vez que este deverá proceder à anulação da concessão, mediante indenização adicional aos operadores pelos investimentos não amortizados ou depreciados.

No cenário atual das loterias municipais, impera a incerteza jurídica, tamanha que apostadores poderiam dizer que "estão jogando na loteria" ao decidir qual loteria escolher. Os operadores lotéricos municipais se veem em uma corda bamba, sem saber se pisam em terreno firme ou em areia movediça. Os municípios, por fim, estão em uma corrida contra o tempo, já que eventual modulação poderá ter um recorte restrito aos serviços ainda não inaugurados, caso prospere a hipótese de incompetência. A única certeza em relação a esta instabilidade é a de que todos perdem.


(1) No voto condutor do acórdão, o Ministro Relator Gilmar Mendes trata de forma exemplificativa sobre a legitimidade dos entes municipais para exploração dos serviços lotéricos ao afirmar que “legislações estaduais (ou municipais) que instituam loterias em seus territórios tão somente veiculam competência material que lhes foi franqueada pela Constituição”.

(2) Em voto aderente proferido pelo Ministro Alexandre de Moraes, constou, em nossa percepção, a possibilidade de exploração de serviços lotéricos em âmbito municipal, sob o fundamento de que a União não poderia reservar para si, no exercício de sua competência legislativa, a exploração dos serviços, estabelecendo distinções entre os entes federativos em seu próprio privilégio, dada a inexistência de expressa vedação imposta aos estados e municípios na Constituição Federal: “Em outras palavras, aqui, Senhor Presidente, quem tem o poder, o verdadeiro poder de regulamentar, de estabelecer todo o sistema de loterias é a União, competência privativa. Ao estabelecer isso, quem pode explorar não é só a União. Os estados e municípios podem, desde que observem estritamente a normatização federal”.

(3) Municípios como Anápolis (GO), Belo Horizonte (MG), Caxias do Sul (RS), Cuiabá (MT), Embu das Artes (SP), Guarulhos (SP), Pelotas (RS), Porto Alegre (RS) e São Vicente (SP) instituíram suas próprias loterias por meio de Lei.

 

Caio Figueiroa
Mestrando em Direito Público (2018) e Especialista em Direito Administrativo (2016) pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (Direito GV). MBA em PPPs e Concessões (2023) pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Vice-Presidente e Diretor de Comunicação da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade). Professor e pesquisador pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE. Advogado em Direito Público, com ênfase em Infraestrutura e Regulação (transportes, logística e construção).

Eduardo Cruz
Especialista em Infraestrutura, Concessões e PPPs pela PUC Minas (2022). Graduado em Direito (2013) pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC). Atua na área de Infraestrutura e Novos Negócios, com destaque na modelagem e estruturação de projetos de parcerias nos setores de mobilidade urbana, sistemas de bilhetagem eletrônica, loterias