VIE 14 DE MARZO DE 2025 - 12:45hs.
Marcello Corrêa, advogado

Os terminais de videoloterias nas operações estaduais e a Lei 14.790/23

Os estados devem regulamentar terminais de videoloterias conforme suas competências materiais independentemente das regras da União, que são limitadas às apostas de quota fixa (Lei 14.790/23). Essa é a opinião do advogado Marcello Corrêa em artigo para o GMB. Segundo ele, a legislação estadual pode tornar as operações mais dinâmicas, superando limitações federais. Terminais devem priorizar eficiência e entretenimento para competir com jogos ilegais, analisa.

Não temos dúvidas que em breve mais estados irão adotar operações com terminais de videoloterias, pois trata-se de um caminho natural para ofertar os produtos lotéricos aos consumidores. Hoje temos operações com terminais na Paraíba, no Paraná e, mais recentemente, no Maranhão. E, certamente, estão na fila: Tocantins, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

Mas a primeira questão que devemos enfrentar é a seguinte: as regras sobre terminais lotéricos presentes na Lei n. 14.790/23 e na Portaria SPA/MF n. 1.207/24 são oponíveis aos estados como regra geral sobre o serviço público de loterias? A resposta é negativa. Vamos explicar: o estabelecido nos parágrafos 2º e 3º e do art. 14 da Lei n. 14.790/23 são de natureza material, pois tratam do modo de operação do serviço público no âmbito da União.

Novamente estamos diante da questão: regras gerais versus regras materiais. E sobre essa distinção, no que tange ao serviço público de loterias, gostamos de citar o ministro Gilmar Mendes na ADPF n. 493:

(...) Isso porque o art. 22, XX, da Constituição confere competência privativa da União apenas para legislar sobre a matéria. Sendo a competência prevista apenas formal, a esse dispositivo não se pode conferir interpretação estendida para também gerar uma competência material exclusiva do ente federativo, que não consta do rol taxativo previsto no art. 21 da Constituição. Em linhas mais simples, aquilo que for tratado em lei federal como serviço público de loteria, caberá aos demais entes aprofundarem os respectivos modelos de exploração (grifo nosso).

Daí que o mesmo ministro arremata mais adiante no Acórdão:

(...) Tais normas estaduais, sejam leis ou decretos, apenas ofenderiam a Constituição Federal caso instituíssem disciplina ou modalidade de loteria não prevista pela própria União para si mesma, haja vista que, nesta hipótese, a legislação estadual afastar-se-ia de seu caráter materializador do serviço público de que o Estado (ou município, ou Distrito Federal) é titular, isto sim incompatível com o art. 22, XX, da CF/88 (grifo nosso).

Os Estados, em síntese, podem explorar as mesmas modalidades da União Federal, assegurando uma simetria de oportunidades e cada qual poderá escolher o modo de execução dos seus serviços de loterias (competência material).   

Então é preciso deixar bem claro que o estabelecido nos parágrafos 2º e 3º e do art. 14 da Lei n. 14.790/23 são de natureza material, pois tratam de modo de operação do serviço público em tela no âmbito da União Federal. Sendo assim vejamos o texto da lei:

Art. 14. As apostas de que trata esta Lei poderão ser ofertadas pelo agente operador nas seguintes modalidades, isolada ou conjuntamente:

I - virtual: mediante o acesso a canais eletrônicos; e

II - física: mediante a aquisição de bilhetes impressos.

§ 1º O ato de autorização do Ministério da Fazenda especificará se o agente operador poderá atuar em uma ou em ambas as modalidades.

§ 2º As apostas de quota fixa que tenham por objeto os eventos de jogo online somente poderão ser ofertadas em meio virtual (grifo nosso).

§ 3º Para fins do disposto no § 2º deste artigo, é vedada a instalação ou disponibilização de equipamentos ou outros dispositivos em estabelecimentos físicos que sejam destinados à comercialização de apostas de quota fixa em meio virtual.


Como pode ser verificado, a limitação operacional estabelecida no texto legal acima foi uma escolha do legislador no âmbito da União Federal para a exploração do serviço público em foco.

Consequentemente, cada estado (por força da competência material), diante das suas características e necessidades, deve estabelecer suas próprias regras para operação dos terminais lotéricos, de maneira independente daquelas traçadas para operações de terminais pela União Federal, repetimos.

No entanto, cabe observar, que nada impede um estado de adotar as mesmas regras estabelecidas na legislação federal, como acontece, por exemplo, nas matérias envolvendo servidores públicos (quando se verifica que o estatuto dos servidores públicos da União é praticamente copiado pelos entes subnacionais). Mas, para isso acontecer, o ente federativo deve publicar suas leis e regulamentos nesse sentido.

E, no caminho oposto, se os estados desejarem explorar os jogos online em terminais, trata-se de uma escolha dentro da sua competência material, sobretudo para tornar sua exploração mais eficiente e amigável ao consumidor.

Como se sabe, cabe aos entes federativos em tela escolher desde o modelo de seleção da delegação, o resultado dessa seleção, a compensação que irão cobrar por delegar um serviço de sua titularidade, a regulação da exploração do serviço em suas jurisdições e todas as demais atividades (incluindo periféricas) que irão influenciar na performance do respectivo serviço público de loterias. 

Tudo isso é consequência do arranjo federativo, que é, por sua vez, cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I da Constituição de 1988) agregada à proibição de intervenção (art. 34 da mesma Constituição) como um dos seus pilares. Daí que para assegurar tal arranjo político e administrativo, somente a própria Constituição estabelece um rol taxativo em que é permitido a União Federal buscar intervir nos Estados.

E, da mesma maneira, não pode haver intervenção por via indireta (vide, por exemplo: IF 114, rel. min. Néri da Silveira, j. 13-3-1991, P, DJ de 27-9-1996 ou ACO 3427 MC-Ref, rel. Edson Fachin, j. 24-09-2020, P, DJE de 14-12-2020). Em resumo, um ente federativo não pode regular os serviços públicos um dos outros.

Mais recentemente, podemos traçar um paralelo com o contido na decisão liminar na ADI 7640 MC/DF (já referendada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal), onde o ministro Luiz Fux se manifestou da seguinte maneira:

Conforme consignei no voto de mérito que proferi na presente ação, o Plenário deste Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADPF´s 492 e 492 e da ADI 4.986, assentou que os Estados têm, em concorrência com a União, competência material para a exploração dos serviços públicos de loteria e que a União, no exercício de sua competência legislativa privativa sobre a matéria, não pode instituir tratamento diferenciado entre os entes federativos, privilegiando determinados Estados em detrimento de outros ou privilegiando a si própria em detrimento dos Estados-membros.

À luz dessa premissa fundamental e forte na consideração de que, por força dos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, o exercício de atividades econômicas por particulares deve ser protegido da coerção arbitrária do Estado, assentei meu entendimento de que a restrição constante do §2º do art. 35-A da Lei nº 13.756/2018 (incluído pela Lei nº 14.790/2023) - que, repita-se, impede que um mesmo grupo econômico ou pessoa jurídica celebre contrato de concessão de serviços lotéricos em mais de um Estado-membro - não encontra amparo na Constituição, seja porque não se encontra prevista no art. 175 da CF, seja porque acaba por impor aos Estados de menor população a celebração de contratos de concessão com empresas tendencialmente menos qualificadas, violando claramente o pacto federativo.

(...)

Em síntese, segundo compreendo, a restrição do §2º do art. 35-A da Lei nº 13.756/2018 (incluído pela Lei nº 14.790/2023) configura violação à autonomia federativa dos Estados-membros, na medida em que inibe, sem justificativa razoável, o exercício de competência material atribuída pela Constituição aos Estados, além de retirar destes entes meio legítimo de autofinanciamento (grifo nosso).

Sendo assim, as regras de natureza operacional presentes na legislação federal não possuem caráter geral diante do atual arranjo federativo.

Contudo, também cabe destacar, nesta oportunidade, que entendemos o desejo legítimo do legislador federal em limitar a oferta de jogos via terminais. Podemos partir da suposição de haver um desejo de preservar os recursos da população em geral. Como se sabe, a oferta de caça-níqueis dentro de comunidades carentes em todo Brasil é um problema grave do ponto de vista da canalização de recursos da população para atividades ilícitas. Então parece que o legislador quis combater tal prática, mas, por aparente desconhecimento da matéria, acabou produzindo uma regra ruim do ponto de vista da operação em um mercado regulado.

Sobre o contido imediatamente acima, podemos dar três argumentos para sustentar tal posição: a) caça-níquel não é terminal lotérico (1)b) o terminal lotérico será operado dentro de um ambiente regulado, enquanto o caça-níquel continuará existindo no plano da ilegalidade; e c) o terminal lotérico apenas disponibiliza o mesmo produto lotérico acessível de qualquer aparelho de telefonia celular ou tablet – cujos acessos já são massificados.

Então, tal limitação parece posicionar a videoloteria dos operadores credenciados pela União Federal em desvantagem em relação aos terminais com jogos online, uma vez que a disponibilidade desses jogos aumenta o dinamismo deles e permite que o apostador tenha acesso a sua conta junto ao operador em tempo real.

Como se sabe, a experiência do jogador deve ser positiva, sobretudo para reforçar o caráter de entretenimento dos jogos lotéricos. Então se a experiência for burocrática ou enfadonha, o jogador irá buscar outros meios de realizar a sua diversão, nem que seja recorrendo aos jogos ilegais.

Agora mais uma questão que vale destacar: a limitação do dispositivo legal supracitado atinge às demais modalidades lotéricas? A resposta é negativa e a própria lei n. 14.790/23 apresenta a resposta em seu art. 1º. Sendo assim, vejamos:

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa e altera:

I - a Lei nº 5.768, de 20 de dezembro de 1971, para consolidar e estabelecer novas regras sobre a distribuição gratuita de prêmios a título de propaganda e sobre a distribuição de prêmios realizada por organizações da sociedade civil, com o intuito de arrecadar recursos adicionais destinados à sua manutenção ou custeio;

II - a Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, para estabelecer diretrizes e regras para a exploração da loteria de apostas de quota fixa; e

III - a Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, para dispor sobre a taxa de autorização referente às atividades de que trata a Lei nº 5.768, de 20 de dezembro de 1971.

Parágrafo único. O disposto nesta Lei não se aplica às loterias, que permanecerão sujeitas à legislação especial.

Como se pode ver, a lei trata apenas da modalidade de quota fixa e, portanto, todas as demais modalidades lotéricas elencadas no §1º do art. 14 da Lei n. 13.756/18 não possuem a limitação operacional da lei de 2023. Sendo assim, vejamos as demais modalidades:

I - loteria federal (espécie passiva): loteria em que o apostador adquire bilhete já numerado, em meio físico (impresso) ou virtual (eletrônico);

II - loteria de prognósticos numéricos: loteria em que o apostador tenta prever quais serão os números sorteados no concurso;

III - loteria de prognóstico específico: loteria instituída pela Lei nº 11.345, de 14 de setembro de 2006;

IV - loteria de prognósticos esportivos: loteria em que o apostador tenta prever o resultado de eventos esportivos; e

V - loteria instantânea exclusiva (Lotex): loteria que apresenta, de imediato, se o apostador foi ou não agraciado com alguma premiação.

Por fim, temos mais uma questão: os operadores credenciados pela União Federal no âmbito da Portaria SPA/MF n. 827/24 podem explorar outras modalidades lotéricas além da aposta de quota fixa? A resposta é novamente negativa porque a citada portaria foi destinada para “estabelecer as regras e as condições para obtenção da autorização para exploração comercial da modalidade lotérica de apostas de quota fixa por agentes econômicos privados em todo o território nacional”. Em outras palavras, as autorizadas da União Federal não podem ofertar jogos diversos dos de quota fixa.

Mas, paralelamente, os operadores que receberem delegação para exploração do serviço público de loterias dos estados (respeitadas às regras dos editais e que cuidaram do modelo de delegação) poderão ofertar produtos online através de terminais (2). Da mesma maneira os estados, cujos terminais poderão ofertar quaisquer das modalidades lotéricas previstas em lei federal, incluindo a aposta de quota fixa (se assim estabelecer, repetimos).

Feita essa breve exposição, podemos concluir:

a)      Aqueles que receberem a delegação da União Federal para exploração da modalidade de apostas de quota fixa deverão obedecer o estabelecido na Lei n. 14.790/23 (e nos regulamentos editados pelo Poder Executivo);

b)      Na última instância, as limitações acima indicadas apenas penalizam a operação regulada e em nada interfere no mercado ilegal dos caça-níqueis;

c)       Cada estado deve regulamentar a exploração dos seus respectivos serviços públicos de loterias, por força da sua competência material, incluindo a exploração via terminais e outros dispositivos; e

d)      As limitações legais supracitadas são endereçadas apenas para exploração da modalidade de aposta de quota fixa no âmbito da União Federal. 

E diante de tais conclusões, podemos esperar que as operações com terminais de videoloterias dos estados sejam bem mais dinâmicas e atrativas do que as operações dos autorizados pela União Federal.

 

(1) Também por oportuno, destacamos que em outubro de 2023, publicamos aqui no GMB o artigo com o seguinte título: “Terminal lotérico não é caça níquel!”, onde ponderamos as diferenças técnicas entre os dois tipos de equipamentos.

(2) Um bom exemplo é o Edital 01/2023 da Loterj – Loteria do Estado do Rio de Janeiro.


Marcello Corrêa
Especialista em relações governamentais, advogado e mestre em Ciência Política. 1º. vice-presidente da Comissão Especial de Esportes, Loterias e Entretenimento da OAB-RJ; Integrante da Comissão dos Jogos da OAB-DF; ex-diretor jurídico da Loterj.